23/12/2020

Notas pandêmicas VI

Como sobreviver a este ano sem fantasia? Como sobreviver a vida sem fantasia? A fantasia nos salva da realidade? A fantasia nos tira da realidade? Até onde precisamos de fantasia? O que é fantasia e o que é idealização? Como lidar com a frustração de fantasias desfeitas pelo conflito com a realidade? Escrever é fantasiar? Paixão é fantasiar? Aonde cabe a realidade? O quanto cabe em nós de realidade? Ser sonhadora é negar a realidade ou um modo de lidar com ela? Ser sonhadora é negar a realidade ou um modo de transformá-la?

19/12/2020

Reiki

Entre o encontro do rio e do mar, fiquei presa. Meu desejo era nadar, sentir o sal, limpar o corpo. Existia uma linha invisível me separando. Me prendendo. Me tolhendo.

Depois me vi no alto da montanha, querendo voar. Sabia que eu podia em devaneio. Fui até a beira, mas me contive ali em cima com a vista imóvel. Era como se existisse um alguém me segurando. Me amedrontado. Me impossibilitando.

Por fim pulei em um rio límpido, com vontade de mergulhar fundo e rolar e nadar. Mas havia uma camada me deixando apenas na superfície. Como se estivesse me mantendo. Me isolando. Me desconectando.

A linha. O alguém. A camada. Sou eu.

Tem palavras expressas que só a voz emite.

17/12/2020

Navio

Passagem. Passageiro. Passa. Navega. Naufraga. Ou ancora - no porto.
Eu sou mar, sempre fui. Você é rio, mas em mim navio.
Passa. Passagem. Passageiro. Navega. Naufraga? Vai ao fundo, mas é desastre. Ancora? No raso, para ir à margem.
Eu aprecio a sua viagem, mas que escolha tenho? Mar não tem para onde ir. Eu estou. Eu fico. Eu imenso e sem rota.
Nunca houve bússola. É você quem porta. Mas sempre estive de bandeja.
Te vejo vir. Te olho aqui. Te sinto ir. O presságio é você passar, passageira.

14/12/2020

Apego

subitamente chega
estremece o chão
faz subir a poeira
entorpece a visão
desequilibra o corpo

repentinamente se vai
cometendo destroços
o cheiro de estrago
consciência perdida
paralisia instalada

como um desastre
ou uma premonição
é alerta infalível
da devastação:
o pesticida do amor

27/11/2020

Tecer

Em uma roda de mulheres feministas
As sábias camponesas ensinaram
A costura dos retalhos da vida...

Delineamos a colcha
Fio a fio
A agulha fura
Como também remenda

Essa é a grande arte de ser mulher
Não aprender a costurar
Mas costurar a si mesma

10/11/2020

Mulher cis

Quando você vai ser mãe?
Eu vou ser mãe?
Quando você vai ser mãe?
Eu quero ser mãe?
Quando você vai ser mãe?
Eu devo ser mãe?
Quando você vai ser mãe?
Eu posso ser mãe?
Quando você vai ser mãe?
Eu consigo ser mãe?
Quando você vai ser mãe?
Como eu vou ser mãe?
Quando você vai ser mãe?
O que é ser mãe?
Quando você vai ser mãe?
Que tipo de mãe?
Quando você vai ser mãe?
Quando eu vou ser mãe?

Para quê mais serve uma mulher cisgênero?

28/10/2020

O que é o amor?

    Nunca hei de saber sua essência, acho que até hoje devo ter sentido com tantos outros sentimentos mesquinhos, que o confundem, o limitam, o destroem. Ainda é por ele que ouso pular do penhasco, ainda em seu nome que busco a liberdade de ser inteira e compartilhar o que carregamos de bom por dentro. Sem esquecer de aprender no que é preciso evoluir.

    Se talvez eu o entendesse em seu âmago estaria hoje mais perto do que sou? Ou melhor, será que eu estaria mais próxima de entender o que quero ser? Acho que o amor é isso. A gente descobre a si mesma, porque se é tudo que falam, que pensam, que sentem, que querem, que desejam, que buscam, que escrevem, se é essa coisa que faz a vida valer a pena, é por ele que a gente entende o que estamos fazendo neste planeta. Ainda estou longe de compreender o amor, então.

    Não é por ele que estamos aqui em uma doença tão fisiológica quanto social, que atinge pessoas, que definha os sonhos, não é por ele que nos sentimos apartadas da natureza, não é por ele que jogamos um bomba atômica na nossa própria casa. A doença é resposta a falta de amor. Mas é por ele que deitamos na areia, na beira do mar, caçando estrelas cadentes e conjecturando o que há além de nós.

    Querer além de nós é amor. Talvez eu sinta tanto amor, mas embebido de egoísmo, carências, traumas, ciúmes, que me faz o confundir com a doença. Com a dependência. Eu não sei ainda decifrar o que é amor e o que não é, eu não sei quando ele chega. Eu não sei ainda lidar com sua temporalidade das estrelas cadentes, ainda que nesta queda livre eu seja uma passarinha.

    Não basta ter asas, é preciso se libertar das gaiolas mentais. São nelas que habitam o desamor. Só em voo livre se ama em autenticidade. E alteridade.

16/10/2020

Armário

    É descabido, mas ainda assim a gente se encaixa. É sufocante, mas ainda assim a gente respira. É destrutivo, mas ainda assim a gente sobrevive. É perda de prazer, mas ainda assim a gente tem conforto. É negar a essência, mas ainda assim a gente se encontra. É impalpável, mas ainda assim a gente se amarra. É preto e branco, mas ainda assim a gente vibra colorido. Até que essa vibração encontre espaço suficiente, se expanda ao nível que o armário seja uma ponte, um avião, um guia até alcançar a felicidade da auto aceitação. Qual o tamanho do seu armário? Qual a profundidade de sua extensão? Por quais fragmentos você ainda o habita? O quão deslocada, sem ar, morta, frígida, perdida, presa, sem cor, você ainda se sente? O que falta para ele se tornar um  completo condutor da sua profunda felicidade? É possível?

18/09/2020

Intuição

É como cheiro de barata. Inconfundível. O faro aponta: há uma barata no ambiente. Não tem erro. Pode ter fuga. Por medo, nojo, preguiça, raiva... Nunca por indiferença. A intuição é como cheiro de barata. Sinalizadora. Hoje eu matei a barata e a mandei descarga abaixo. Agora o que faço com meu faro que, através desse odor forte tomando conta do banheiro, aguçando os outros sentidos, indica que eu estou traindo a mim mesma? 

25/08/2020

Virgem

escorro
toda vez que te observo

fico eu descendo entre as pernas
alcançando o chão
te fitando debaixo
que visão!

você traga, fala, come, anda, para
e eu saio das entranhas
buscando ganhar espaço
ou fazer o sentir ir para além de mim

e quem sabe te alcançar
se derretida estiver também

19/08/2020

Balança

    De canto de olho eu observo, como quem finge nem ouvir a conversa, mas atenta escuta cada detalhe. É como se estivesse chegando em um lugar desconhecido e o instinto aconselha observar as saídas para possíveis perigos, na verdade eu já esquematizei todas as estratégias. Ora despretensiosa, como quem está atrás de uma boa fofoca, ora em alerta, como espera uma catástrofe. Ou como quem já sabe da catástrofe? Não sei... Não sei se sei ou se quero fingir não saber.
    Mas de olhos bem abertos, mirando, encantada, eu me jogo numa deliciosa conversa daquelas de perder de vista ano, dia, pandemia. Ou então me pego solta em um lugar sem nenhuma proteção, mas completamente estasiada a ponto de me sentir em casa. Assim não tem ora isso ora aquilo, essa sou eu apaixonada, deslizando na felicidade, planejando antes de dormir, construindo pontes, devaneando os passos seguintes, sorrindo tão boba, que faz até parecer as coisas terem sentido...
    Ela pende para que lado?

24/07/2020

Queda livre IV

acho que to me apegando aos detalhes depois de você
estão todos na minha cabeça
impedindo de te esquecer
não que antes eu não te lembrasse sempre
é só que agora o tempo parece dilatado

a paixão está correndo longe
quer alcançar o horizonte
eu já disse que é pandemia
perigoso demais ultrapassar limites
e paixão escuta?

é surda, mas enxerga tão bem
faz pirraça dizendo que consegue olhar além
eu ainda estou aqui com medo
mas ela já foi sem mim
feito criança descobrindo algo novo

confesso que estou achando graça
às vezes me deleito nessa alegria desgovernada
outras vezes abro os olhos me certificando
não sei se ainda sei ser queda livre
mas por enquanto teu cheiro no vento permanece meu faro

13/07/2020

Notas pandêmicas V

Amar é viver eternidades. É esquecer-se da morte. Ou aceitá-la. É ver a infinitude do horizonte e ainda assim, caber-se dentro dela. Amar é como ter sucessivas epifanias. Faz parecer ter descoberto o sentido da vida mesmo sabendo que é uma grande incógnita. É encontrar casa ainda que a energia humana esteja por toda parte. É pertencer sem possuir. É dar sem entregar. Amar sempre será compartilhar. Expandir. Repercutir. Ao amar aqui eu amo acolá. Ao amar nesta cidade eu amo em outro país. É assim que funciona a natureza. Amar é natureza. É de nossa natureza. Ao amar esquece da distância, da feição, do tempo, ao amar viajamos para a essência, pousamos no íntimo, nos aproximamos do instinto. Amar é dar beleza a essa matéria viva pensante, que se perde achando que há outro caminho senão esse - amar. Ao amar, parecemos seres luminosos exclusivos e eternos. Esquecemos da morte ou a aceitamos como dádiva. Porque ao amar, a dimensão de passado, presente e futuro parece uma linha semelhante ao horizonte, infinita, em que nos equilibramos, e cair não amedronta, porque temos um oceano inteiro.

02/07/2020

Notas pandêmicas IV

Boiar olhando o céu sem óculos, para que não impeçam os raios do sol ofuscarem um pouco a visão. Abrir o corpo, descansar o corpo, deixá-lo ir. Se balançar no vai e vem das ondas, soltar o controle da vida, reconhecer sua imprevisibilidade. Não se sabe os graus de temperatura do dia, a força da maré, o peso do corpo. O peso do corpo que carrega. Dor. Culpa. Desespero. Não se sabe, mas ao boiar entrega. E entregando deixa ir. O que fica, no mergulho se vai. O sal e a potência da água abraçam a gente e por isso dizem que nós seres racionais não respiramos em submersão. Não há aconchego maior! E aí reside o perigo. Mergulho por muito tempo é bolha. Que seguro seria morar em um mergulho (é como regressar ao útero). Mas não seria imprevisível. Por isso retornamos ao ar, retomamos o ar. Buscando respiro, o céu, a imensidão do horizonte, a incógnita de ser pessoa humana. 

"O que sei: sou do mar. Vivo de saldade."

12/06/2020

Se

    E se por um dia o mundo parasse? Digo, se por um dia as pessoas humanas desaparecessem e com isso também a guerra, a poluição, a disputa por poder, a violência cotidiana, a fome, o câncer, a deterioração da vida, a pandemia desenfreada? Se por um dia somente eu estivesse viva? E caminhasse sem pressa, olhando as ruas vazias, contemplando a cidade sem caos - é possível?
    Se fosse possível ouvir o silêncio, brincar com as preguiças, descansar com as gatas, cantar com pássaros, se fosse possível contemplar sozinha a natureza? Olhar o céu e ver as fotografias das nuvens, os diversos tons de amanhecer e crepúsculo? Se chovesse, como seria dançar nua no meio de alguma estrada? Para onde eu iria?
    E se andando, sem destino nem pressa, sabendo que estaria sozinha, se eu esquecesse que há bairros, fronteiras, que há cidades e países, se eu seguisse andando sem perder o rumo, já que o rumo seria conhecer os lugares agora sem nomes, se andando assim por acaso eu te avistasse ao longe?
    Se o mundo também estivesse por um dia parado para ti, sem saber dessa sorte ou desse sonho, a gente se encontrasse em qualquer esquina da vida estancada? Como seria te tocar depois dessa longa espera? Qual seria teu cheiro com o ar puro? Como seria transar numa praia sem ser deserta porque deserta é a ausência de gente? E quantas conversas não teriam limite temporal só por sabermos que por um dia o mundo seria nós?
    E se esse dia fosse hoje?

30/05/2020

Andarilha

Eu saúdo a mulher que fui
Eu saúdo a mulher que sou
Eu saúdo a mulher que estou a ser

Eu escavo os meus buracos
Eu habito os meus vazios
Eu encontro minha própria ausência de mim

Eu olho meus traumas
Eu escuto minha criança interior
Eu sinto minhas cicatrizes

Eu agradeço a vida
Eu cultivo a cura
Eu me autoconheço

Eu dou boas vindas ao ciclo
Eu desabrocho para o novo
Eu me deleito com o imprevisível

Eu saúdo a mulher que fui
Eu saúdo a mulher que sou
Eu saúdo a mulher que estou a ser

28/05/2020

Ribeiro

por natureza
e sobrenome
és de água

em um curto caminho
você afluiu em mim

estou em dilúvios

como Oxum,
uma deusa do amor
espalha paixão

me banha
me molha
me entranha
me aprofunda

pequena
mas fluída
escorre meu corpo
goteja nos poros

e eu transpiro saudade

18/05/2020

Um pedido

Eu acordaria cedo só pra viver a moleza de demorar na cama. Não me apressaria. Não seria fisgada pelo tempo. Agora parece alucinógeno estar nos teus braços. Enroscar os pés, cheirar o pescoço, cruzar as mãos, fitar os olhos. É delírio se entregar. E delirante.

Eu ouviria tuas histórias engraçadas de rir até doer a barriga. Aproveitando pra te admirar sem você nem desconfiar. Te ouviria tocar e cantar, provando que a paixão sempre tem locais ainda não visitados. Te ouviria falar com o olhar, porque o teu diz muito. E nós conversamos de várias maneiras.

Eu descobriria o espaço do meu quarto com a tua presença. O movimento do sol, as entradas de luz, o tamanho da cama para duas mulheres pequenas. Te deixaria dar cheiro e energia, dar sentido e marca. Pra te gravar além do que já tem em mim. Pra expandir teu lugar.

Eu estaria mole, boba, serena, despreocupada, romântica, dada, fofa, embriagada, preguiçosa, namorada. Se por hoje eu te tivesse.

05/05/2020

Notas pandêmicas III

A solidão tem se aprochegado, a tpm que volta, o inferno astral que chega, o enclausuramento que intensifica. O estado de ser só no mundo por vezes parece desaparecer, quando encontro pessoas companheiras. Muitas delas são família, sem ter meu sangue ou compartilhado a vida há anos. Família é encontro de almas. E nos auxilia a fazer morada, a carregar no peito muito embora distante. Dão sentido a existência. Este mês findando mais um ciclo de vida, continuo buscando este sentido, se ele existir. Ainda aprendendo com o que falta em mim, ainda descobrindo o que já tenho. 
Despedidas me fazem pensar no significado da vida e na efemeridade dela. Hoje vi o mar, estava cheio. E vazio de pessoas. A cidade revelando a desigualdade. Quem tem fome não tem tempo de significar a vida. A lua está quase cheia. E eu to esvaziando, encerrando o ciclo. Derramando sangue. E lágrimas. Tem momento que é pesado existir. Saber da insignificância diante do mundo. Vejo as nuvens seguirem qual seja o rumo no céu, os passarinhos livres pra escolher pouso aonde quer que seja, a planta brotando entre o piso do terraço. Cada dia é um dia a mais pra aprender a sutileza da vida. Despedida é a única coisa que eu não aprendo e que faço questão de nunca aprender.

04/05/2020

Porta destrancada

Ontem eu queria não ter contado os dias. Só por ontem. Não pensar que era sábado, que horas são, o que cozinhar, me perguntar o porquê afinal eu continuo fumando em plena pandemia, não lidar com o vazio de dentro pra fora de fora pra dentro. Ontem eu podia não ter contado os dias. Não sabia que era possível, por isso preferi não mensurar em meses. Achei mais justo aliviar o peso do tempo. 

Mas você simplesmente entra na minha rua, brota em frente a minha casa, quiçá invadiu meu sonho! Sigo presa na imagem de cruzar o portão e te encontrar ou ser acordada ainda meio bêbada por você ou despertar ouvindo sua voz e me deparar contigo no corredor. Qualquer memória criada sobre te ver me tira o ar. Qualquer cena concebível é avassaladora. 

A porta estava destrancada e eu nua. Quase um pleonasmo. Os dois atos anunciam a mesma coisa: me encontro absolutamente despida. Não tem razão contar os dias, não sei o que o tempo nos reserva, mas espero a tua chegada. Sem ser certa, sem ter data. Doído que é me jogar na incerteza, mas sensato para quem vive a suspirar tua presença.

Poder te ver me sacudiu por dentro, perdi os cálculos. Agora vou driblar o tempo, o calendário já perdeu o propósito mesmo. Vou te escrever com título próprio, para saber que cada palavra escrita é pensada em você. Não medida. Agora a porta vai permanecer destrancada. E eu dormindo nua.

21/04/2020

Trigésimo quinto dia

Enquanto desperto
a yoga ensina
que liberdade é
não se comparar

Enquanto cozinho
com Raul Seixas aceito
que felicidade é ter amado
mais de uma vez

Enquanto tomo banho
Liniker faz desejar
que você me chame de
tua

19/04/2020

Notas pandêmicas II

Saudosismo é a saudade de algo do passado que não foi ou não se é mais possível vivenciar. Quando vão inventar uma palavra para a saudade de coisas do futuro que não serão vividas?

17/04/2020

Amor maior

Mama,

Tenho tantas coisas mudas para te perguntar. Nem te endereçaria esta carta porque são coisas que não tem respostas dizíveis. Mas como você conseguiu ainda ser mulher com três crianças no mundo que depois viraram adolescentes? Como dorme bem mesmo agora que somos pessoas adultas?

Um dia qualquer você viveu sem culpa? E quantas vezes destestou a maternidade? E como foi saber que também se detesta as crias? O que te fez ainda acreditar em homens mesmo os nossos pais não chegando perto do que você foi e é? Quando se permitiu ser fraca a ponto de perder o rumo?

Se encontrar sozinha sem mãe e pai te fez mais forte por nos ter? A gente realmente te ama como você merece? Um dia qualquer você vai conseguir definir esse amor que nos tem? Já imaginou sua vida sem a gente? Qual seria a felicidade dela?

Quantas idealizações sobre nós você já criou e que foram frustradas? Quantas sobre você que foram interditadas? Será que seria doutora? Viajaria mais? Será que estaria casada? Falaria quantas línguas?

O quanto interrompemos sua vida? O quanto sua vida andou anos luz com a gente? Faria tudo igual? Existe amor maior do que esse? Ser avó é a delícia que não há em ser mãe? Você me desculpa se um dia eu definitivamente não te proporcionar isso?

Como você consegue ensinar com o olhar? Por que me sinto viva e segura só por você existir?  Você me perdoa por todas as vezes que te julguei pela pequeneza de não saber sua carga? Você sente meu amor de longe? Para onde ele vai quando você não estiver mais aqui?

Da sua pretusca.

09/04/2020

Notas pandêmicas

Há vida uma vida inteira pós-pandemia e nela eu quero conhecer o Club Lucille em Buenos Aires aprender a dirigir adotar uma gata fazer uma coleção de canecas escrever um livro de poemas estar em dois lugares ao mesmo tempo colar estrelas no teto do meu quarto ler O segundo sexo de Simone de Beauvoir  comprar um fusca conhecer um elefante fazer sexo tântrico parar de fumar  deixar o cabelo grande colocar um piercing no umbigo falar fluentemente espanhol comprar um all star praticar ginecologia autônoma visitar Cuba escrever um conto fazer tatuagens voltar à Barra de Mamanguape comemorar todos os meu aniversários ler de novo A paixão segundo G.H.  de Clarice Lispector descobrir minha paleta de cores fazer terapia por toda vida viajar sozinha rezar como quem se alimenta e dorme conhecer a Bahia fazer aula de canto ler Paulo Freire praticar sua pedagogia ver estrelas cadentes arco-íris lua cheia por do sol fazer um mochilão pela América Latina escrever minha autobiografia me casar por que não? me culpar menos me amar mais acreditar em mim sempre.

06/04/2020

Vigésimo dia

O mundo doente, distanciamento social, um momento inédito na história da humanidade e eu sigo contando os dias. Porque um a mais significa um a menos e porque quando eu penso que ao cruzar o portão vou poder te encontrar, me parece menos sofrido encarar os dias imensuráveis. Planejo momentos como se ainda fosse possível planejar...

Fazendo presença no sonho, entrando em contato disfarçadamente, falhando em letras de músicas, errando em te registrar nas palavras, me enganando em te cravar na mente, traçando planos impossíveis para te ver, dispondo de energia e tempo para te manter comigo, prossigo contando os dias...

Essa é a natureza doentia da paixão, essa a é essência do que me causas... Sem chão, sem proteção, ainda mais desequilibrada. Avalio os riscos, sei que estou entregue então de que adianta se já apostei todas as fichas? Descubro que os riscos se ampliam se não disponho mais de fichas, no entanto me mantenho contando os dias...

Apostei nessa montanha russa de viver apaixonada, quantas descidas e subidas nesse curto período! Vou te encontrando ou te colocando no meio dos meus dias cheios de mesmice, porque é assim que meu coração dispara. Anunciando que todos os riscos estão no meu colo, que eu estou ciente e, conscientemente, ignorando todos. E que permanecerei a contar os dias...

Doente estou eu.

30/03/2020

Período fértil

em março os dias findos são de chuva
e logo eu que não umedeço
também ando molhada

o terreno ficou fértil

mas não é qualquer coisa que nasce
porque não é qualquer coisa que planta
logo não é qualquer pessoa que germina

com os dedos se vai fazendo o processo
aduba, sementeia, planta, rega
contorna, adentra, pressiona, molha

em março os dias findos anunciam o fim do verão
e como eu não umedeço
agradeço o período contrário a estiagem

27/03/2020

Décimo dia

Seus poucos rastros
me mantém com o pensamento vivo
tentando te encontrar na pouca memória

Estranho ser pouco o tempo
e grande a vontade

Busco descobrir que rumo seguir
que seja o certo

Deixar o tempo que será muito minar a vontade
até que seja pouca?

Ou domar o tempo para que seja insuficiente
em abrandar o querer?

Na dúvida traço percursos
toco alfaia
tomo um vinho
busco teu cheiro

E cá me pego eu
acompanhando os teus rastros...

Quando vi meus muros desconstruídos
a vida ergueu outros

Mas o coração segue selvagem como de Belchior
trilha os comandos da alma
se esquivando da razão

A bússola está viciada
direcionando sempre ao mesmo ponto
e me entregando de bandeja

Ela só atende a esse ímã
que é você

22/03/2020

Pandemia

olhando da janela do quarto novo
me parece que tudo é devaneio

o tempo passa lento
e a distância se torna maior

me certifico do amor
torço pelo reencontro
temo a morte
combato a ansiedade
planejo a semana

o tempo à passos lentos
são só cinco dias eu repito

a distância à passos largos
estamos na mesma cidade

eu, família, amizades, quereres

estamos no mesmo país
brasil que somos
superando mais um colapso

todas as pessoas estão no mundo
distantes
contando no relógio
esse tempo de pandemia

o que salva é lembrar o mar
o som das ondas
o mergulho
o vento forte
as pegadas na areia

tudo é passageiro

19/01/2020

Homofobia

é difícil usar essa palavra
porque exige reconhecer a podridão do mundo
e que ela me atinge como uma tsunami

quem ousa repudiar o feio
para construir o novo, o belo
- e não há maior beleza do que a liberdade -
se espanta e se desmorona
quando encara as prisões
que pela pequeneza dos seres humanos
nos imputam

é difícil verbalizar, escrever, reconhecer
essa palavra
nas teias da vida

estou presa

desejam cortar minhas asas
mal sabem que eu
e as pessoas
foram e são feitas
para voar

ela não vai me manter no chão
daqui observo o céu
o bem está lá

não vou esmorecer

tenho a força e a coragem para construir saídas
que me levarão a serenidade
de ser quem eu sou
e amar conforme meu coração pulsa

11/01/2020

Dia de lua cheia

Esse ano que passou aprendi a ser só. Ainda estou a entender o que foi solitude e o que foi solidão, mas cada vez mais firme na consciência de que enquanto condição existencial me ponho no lugar de descobrir essa potência. Não mais lamentar...

Foi o que me colocou em um nível extremo de encontrar o amor próprio que julguei já ter muito... Que engano! Ele tem mais a ver com se entender neste mundo, se permitir ao medo, ao choro, a insegurança, entender que o sofrimento é passagem, do que se enxergar bela, interessante e autossuficiente.
Esse ano chega com a sensação para mim, enquanto boa geminiana, de que a construção do ser só vai me permitir compartilhar as experiências com maior maturidade e poder de decisão. Não estou mais sendo levada pela onda do mar, estou agora nadando com destino em mente. Se meu percurso vai ser alcançado, aí já dizem dos mistérios de viver...

Enxergo quem sou, quem me tornei, o que desejo ser e aonde quero chegar. O tempo é meu grande amigo.