30/05/2020

Andarilha

Eu saúdo a mulher que fui
Eu saúdo a mulher que sou
Eu saúdo a mulher que estou a ser

Eu escavo os meus buracos
Eu habito os meus vazios
Eu encontro minha própria ausência de mim

Eu olho meus traumas
Eu escuto minha criança interior
Eu sinto minhas cicatrizes

Eu agradeço a vida
Eu cultivo a cura
Eu me autoconheço

Eu dou boas vindas ao ciclo
Eu desabrocho para o novo
Eu me deleito com o imprevisível

Eu saúdo a mulher que fui
Eu saúdo a mulher que sou
Eu saúdo a mulher que estou a ser

28/05/2020

Ribeiro

por natureza
e sobrenome
és de água

em um curto caminho
você afluiu em mim

estou em dilúvios

como Oxum,
uma deusa do amor
espalha paixão

me banha
me molha
me entranha
me aprofunda

pequena
mas fluída
escorre meu corpo
goteja nos poros

e eu transpiro saudade

18/05/2020

Um pedido

Eu acordaria cedo só pra viver a moleza de demorar na cama. Não me apressaria. Não seria fisgada pelo tempo. Agora parece alucinógeno estar nos teus braços. Enroscar os pés, cheirar o pescoço, cruzar as mãos, fitar os olhos. É delírio se entregar. E delirante.

Eu ouviria tuas histórias engraçadas de rir até doer a barriga. Aproveitando pra te admirar sem você nem desconfiar. Te ouviria tocar e cantar, provando que a paixão sempre tem locais ainda não visitados. Te ouviria falar com o olhar, porque o teu diz muito. E nós conversamos de várias maneiras.

Eu descobriria o espaço do meu quarto com a tua presença. O movimento do sol, as entradas de luz, o tamanho da cama para duas mulheres pequenas. Te deixaria dar cheiro e energia, dar sentido e marca. Pra te gravar além do que já tem em mim. Pra expandir teu lugar.

Eu estaria mole, boba, serena, despreocupada, romântica, dada, fofa, embriagada, preguiçosa, namorada. Se por hoje eu te tivesse.

05/05/2020

Notas pandêmicas III

A solidão tem se aprochegado, a tpm que volta, o inferno astral que chega, o enclausuramento que intensifica. O estado de ser só no mundo por vezes parece desaparecer, quando encontro pessoas companheiras. Muitas delas são família, sem ter meu sangue ou compartilhado a vida há anos. Família é encontro de almas. E nos auxilia a fazer morada, a carregar no peito muito embora distante. Dão sentido a existência. Este mês findando mais um ciclo de vida, continuo buscando este sentido, se ele existir. Ainda aprendendo com o que falta em mim, ainda descobrindo o que já tenho. 
Despedidas me fazem pensar no significado da vida e na efemeridade dela. Hoje vi o mar, estava cheio. E vazio de pessoas. A cidade revelando a desigualdade. Quem tem fome não tem tempo de significar a vida. A lua está quase cheia. E eu to esvaziando, encerrando o ciclo. Derramando sangue. E lágrimas. Tem momento que é pesado existir. Saber da insignificância diante do mundo. Vejo as nuvens seguirem qual seja o rumo no céu, os passarinhos livres pra escolher pouso aonde quer que seja, a planta brotando entre o piso do terraço. Cada dia é um dia a mais pra aprender a sutileza da vida. Despedida é a única coisa que eu não aprendo e que faço questão de nunca aprender.

04/05/2020

Porta destrancada

Ontem eu queria não ter contado os dias. Só por ontem. Não pensar que era sábado, que horas são, o que cozinhar, me perguntar o porquê afinal eu continuo fumando em plena pandemia, não lidar com o vazio de dentro pra fora de fora pra dentro. Ontem eu podia não ter contado os dias. Não sabia que era possível, por isso preferi não mensurar em meses. Achei mais justo aliviar o peso do tempo. 

Mas você simplesmente entra na minha rua, brota em frente a minha casa, quiçá invadiu meu sonho! Sigo presa na imagem de cruzar o portão e te encontrar ou ser acordada ainda meio bêbada por você ou despertar ouvindo sua voz e me deparar contigo no corredor. Qualquer memória criada sobre te ver me tira o ar. Qualquer cena concebível é avassaladora. 

A porta estava destrancada e eu nua. Quase um pleonasmo. Os dois atos anunciam a mesma coisa: me encontro absolutamente despida. Não tem razão contar os dias, não sei o que o tempo nos reserva, mas espero a tua chegada. Sem ser certa, sem ter data. Doído que é me jogar na incerteza, mas sensato para quem vive a suspirar tua presença.

Poder te ver me sacudiu por dentro, perdi os cálculos. Agora vou driblar o tempo, o calendário já perdeu o propósito mesmo. Vou te escrever com título próprio, para saber que cada palavra escrita é pensada em você. Não medida. Agora a porta vai permanecer destrancada. E eu dormindo nua.