16/04/2023

Emaranhado

Eu sempre amei torto. Tortíssimo. Não sei amar em retidão. Eu amei sempre em emaranhado. Com outros sentimentos que se misturam. Apego, ciúmes, raiva. O amor deixa de ser amor por estar emaranhado com outros sentimentos? Existe amor só amor? Não sei, sempre amei assim. Muitas vezes senti culpa por não saber amar. Até hoje não sei. Não saberei. Acho que não se aprende a amar. 

É difícil saber quando o amor chega, mais ainda quando o amor se vai. Ver o amor emaranhado sem amor muitas vezes fez eu me apegar aos outros sentimentos, achando que ainda amava. O vazio do amor é coisa doída que faz a gente desejar sentir qualquer coisa, mesmo que coisa mais doída ainda de sentir. Talvez o amor se transmute, reivindicando um outro emaranhado.

Se aprendi que quando amo mudo a mim, aprendi com meus grandes amores. Lembro deles e desejo um espaço novo em minha vida. Grandes amores deixam um dia de serem amores? Acho que talvez se emaranhem outros sentimentos, maiores e que precisam de mais entrelaçados. Amor com amizade, cuidado, intimidade de quem já conhece a doçura e amargues daquela alma.

Cansei da culpa de amar torto, impreciso, falho. O amor que entreguei não me arrependo, ainda que fosse coberto com o novelo de outros sentimentos. Posso tecer novos emaranhados, aprender em crochê modelos mais ajustados, mas não sou habilidosa com a agulha. Me interessa mais colocar o fio na ponta, movimentar as mãos, cruzar as linhas. Ver a mistura das cores.

Não sai adorno bonito. O que sai quando amo, é o que sou. O que sou muda, inevitavelmente. Então sim, meus grandes amores serão ainda grandes amores, só que de grandezas fiadas de um amor com linha diferente.

E quando amo é com o que sou, posso amar adiante um outro grande amor com emaranhados novos, mas as mãos de quem já sabe que mais vale os olhos no instante e a beleza da persistência. Não sei amar bonito, não quero saber de formato. Todo grande amor é como a utopia de aprender a amar pela primeira vez.

15/04/2023

Transmutar

eu existo enquanto humana
quando escrevo

deixo de ser só um bicho que
observa
corre
escuta
come
fode e reza.

03/04/2023

Pai

Não sei o dia em que você juntou suas roupas e foi embora. Eu tinha quatro anos e não tenho nenhuma lembrança, mas sei que ali eu morri. O que recordo, quando maior, é de minha eterna saudade e a dor da despedida. Não sei se criei ou se o filme de ir seguindo dentro do carro e te dando tchau, realmente existiu. Sei que sempre tive a sensação de te abandonar. Que estranho, né? Eu era a criança e você o adulto, morando isolado. Como até hoje. Eu sempre fico pensando de onde vem minha dor em não ser amada e o meu medo de ser abandonada. Cada vez que chego a mais respostas, escrevo.
A melhor memória que tenho é descendo um tobogã de lama e mergulhando no rio. Você fotografando eu e meus irmãos. Fico indagando o quanto de memórias eu apaguei para não lembrar a dor de não ter você ao lado. Um pai sazonal ainda é um pai para a realidade de hoje. Mas eu sei das faltas. Eu ainda sinto elas. Será que deixarei de sentir um dia? As vezes penso em te ligar e dizer: eu também sei te abandonar. Que estranho, né? Isso diz muito sobre minha incapacidade de ser filha.

Essa é a primeira carta de não-amor que escrevo para você. Vinte quatro anos depois, porque agora eu sei escrever e sei de mim.

Mama

Percorro a casa resmungando: "tudo sou eu!". Lembro minha mãe e penso: "estou me tornando igual". Mas no sopapo estendendo a calcinha recordo: "ela têm três crias". Nunca hei de saber como aguentou ter ela e ainda mais três. Nesses beliscões figurados que a vida me dá, eu sei da sorte de tê-la. 

É difícil me ter. Tudo sou eu! E para ela, que além de tudo ser ela, tínhamos nós também? Temos nós também. Até o fio da vida se cortar, ela nos terá. É pesado ser eu. Mas eu tenho ela. Ainda. Desço do banco, olho as roupas para lavar, a pia de pratos... Eu não estou sozinha.